ENTREVISTA
Direitos das pessoas com deficiência
Por Ana Paula Almeida | Ed. 124 setembro 2021
Desde que a proteção a universal dos Direitos Humanos foi estabelecida, em 10 de dezembro de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em Paris pela Assembleia Geral das Nações Unidas, os direitos das pessoas com deficiência também entraram em destaque no cenário mundial.
Em 2006, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção Internacional de Proteção às Pessoas com Deficiência, um instrumento internacional de direitos humanos, que tem a finalidade proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência.
O documento apresenta princípios que formam uma base para esses direitos: o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; a não discriminação; a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; a igualdade de oportunidades; a acessibilidade; a igualdade entre o homem e a mulher e o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo seu direito de preservar sua identidade.
Confirmando a recepção dessas ideias, em 2009, o Brasil publicou o Decreto 6.949/2009, que promulgou a convenção no País. Com isso, cada vez mais são realizados movimentos e ações para fortalecer a proteção e a garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
No Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), a temática é uma constante por meio de ações de diversas unidades e setores do órgão. Um exemplo disso foi a realização, no dia 25 de agosto, pela Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (Esmaf), do webinário “De Ximenes Lopes ao Estatuto da Pessoa com Deficiência: Um caminhar pela dignidade e autonomia”.
O evento resgatou um caso histórico no Brasil de violação dos direitos humanos de Damião Ximenes Lopes, vítima de tortura, que morreu em 4 de outubro de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, onde estava internado devido à condição mental. O fato levou o Brasil a ser condenado, em 2006, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Por conta desse fato, o do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou a Resolução 364/2021, que instituiu a Unidade de Monitoramento e Fiscalização de decisões e deliberações da CIDH.
Também no âmbito do TRF1, a criação da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (Copaci) tem proporcionado várias iniciativas para promover debates e reflexões sobre os direitos das pessoas com deficiência, além de impulsar a acessibilidade na Corte.
Todos esses assuntos foram destaque em uma conversa da Primeira Região em Revista com o juiz federal Ed Lyra, substituto da 22ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) e membro da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão do TRF1 (Copaci). O magistrado aprofundou questões relacionadas ao tema e às ações do Poder Público para fortalecer os Direitos das Pessoas com Deficiência. Confira!
Primeira Região em Revista: A pauta de acessibilidade e outros temas relacionados aos direitos das pessoas com deficiência, atualmente e cada vez mais, estão em evidência, ganhando destaque em iniciativas do Poder Público e da sociedade em geral. Na sua avaliação, a que se deve esse movimento de conscientização?
Juiz federal Ed Lyra: A conscientização crescente deve-se sobretudo à melhor divulgação da causa das pessoas com deficiência. Tais demandas encontram progressivo respaldo na sociedade civil e perante o Estado. Seja pela melhor organização de movimentos de reivindicação, seja pela inserção social de pessoas com deficiência em diversas atividades, gradativamente se superam antigas concepções e se percebe a legitimidade das demandas das pessoas com deficiência.
Primeira Região em Revista: Em 21 de setembro, é comemorado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. Ao longo do mês, o TRF1 realizou algumas ações para dar visibilidade à causa e, até mesmo antes, no final de agosto, a Escola da Magistratura Federal da 1ª Região, realizou um Fórum Jurídico sobre direitos humanos e pessoa com deficiência. Que análise o senhor faz de iniciativas como essas?
Juiz federal Ed Lyra: São extremamente positivas exatamente para a conscientização de toda a comunidade direta e indiretamente vinculada ao Judiciário: magistrados, servidores, estagiários, prestadores de serviço, advogados e jurisdicionados. Os eventos buscam informar o referido público e a conscientização constitui um dos alicerces do principal objetivo: a formulação e a implementação de uma política para as pessoas com deficiência no âmbito do Judiciário.
Primeira Região em Revista: O evento da Esmaf destacou a história de Ximenes Lopes, vítima de tortura, que morreu em 4 de outubro de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, onde estava internado devido à condição mental. O fato levou o Brasil a ser condenado em 2006 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O que se pode destacar da legislação brasileira, quanto aos direitos da pessoa com deficiência, especialmente para se combater situações como essa?
Juiz federal Ed Lyra: O precedente é um caso extremo de violência contra pessoas com deficiência mental – a categoria mais vulnerável quanto a maus tratos e práticas similares, bem assim a mais sujeita a medidas extremas como a institucionalização.
Muitas espécies de deficiência impuseram até um passado recente à segregação em instituições, seja para fins de tratamento, seja para a educação e/ou simples moradia.
No caso de pessoa com deficiência mental, há tendência atual de se evitar ao máximo a internação, reservada a casos excepcionais e durante o período mais breve. O tratamento deve ocorrer em paralelo com uma vida social tão plena quanto possível, preferencialmente com vínculos familiares, laborais, sociais. Mais especificamente, menciono instituições previstas na Lei nº 13.146/2015:
Art. 3º
(...)
X - residências inclusivas: unidades de oferta do Serviço de Acolhimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas) localizadas em áreas residenciais da comunidade, com estruturas adequadas, que possam contar com apoio psicossocial para o atendimento das necessidades da pessoa acolhida, destinadas a jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, que não dispõem de condições de autossustentabilidade e com vínculos familiares fragilizados ou rompidos;
XI - moradia para a vida independente da pessoa com deficiência: moradia com estruturas adequadas capazes de proporcionar serviços de apoio coletivos e individualizados que respeitem e ampliem o grau de autonomia de jovens e adultos com deficiência;
Deve-se acompanhar se toda esta política será implementada. Nesse contexto, subsistem muitas questões: como será o custeio dessas instituições? Onde estarão presentes? Qual será a qualificação do pessoal?
De volta à relevância da conscientização, para a sociedade em geral, o conhecimento das demandas das pessoas com deficiência pode contribuir para a prevenção e repressão de situações como a descrita no precedente.
Na atualidade, o incremento de comunicações às autoridades já evidencia um resultado positivo de um longo e permanente conjunto de ações para conscientização quanto a questões análogas à violência doméstica contra crianças e idosos.
No ponto, destacaria outra disposição da Lei nº 13.146/2015:
Art. 7º É dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência.
Parágrafo único. Se, no exercício de suas funções, os juízes e os tribunais tiverem conhecimento de fatos que caracterizem as violações previstas nesta Lei, devem remeter peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.
Primeira Região em Revista: Pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado brasileiro deve continuar a desenvolver programa de formação e qualificação de profissionais da saúde que atuam com pessoas com deficiência. O Conselho Nacional de Justiça firmou parceria com a Corte para aprimorar, também, a formação dos profissionais do direito no Brasil. De que maneira essa parceria pode refletir na garantia dos direitos da pessoa com deficiência?
Juiz federal Ed Lyra: Mais diretamente, a parceria pode resultar em ações para o conhecimento inicial e/ou aprimoramento da qualificação sobre o tema das pessoas com deficiência. Essas ações revelam o potencial de alcançar toda a comunidade a que me referi na questão anterior. Na atividade jurisdicional, magistrados e suas assessorias poderão apreciar com mais elementos as demandas referentes ao tema, por exemplo, nas searas administrativas e da seguridade social. Por sua vez, advogados e estudantes também poderão ser alcançados por ações educativas e, assim, se qualificar para a defesa dos direitos das pessoas com deficiência em juízo, perante a administração, no meio acadêmico ou de alguma outra forma na sociedade civil.
Primeira Região em Revista: Na Primeira Região, os direitos das pessoas com deficiência também passaram a ser uma pauta prioritária. Nesse sentido, o TRF1 criou a Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (Copaci), da qual o senhor é um dos membros. Poderia discorrer sobre a atuação da Comissão no que diz respeito à inclusão de pessoas com deficiência e sua relevância no contexto atual?
Juiz federal Ed Lyra: As comissões atuam na formulação de orientações para a implementação de toda política de inclusão no âmbito do Judiciário. São integradas por representantes de diversos setores do Tribunal e têm sugerido e acompanhado a concretização da política de inclusão.
Muitas iniciativas já têm produzido resultados concretos: adaptações arquitetônicas e de mobiliário, realização de numerosos eventos acerca do tema e identificação de pessoas com deficiência e suas demandas.
Primeira Região em Revista: Um dos aspectos que se revelou importante, principalmente nesse período de pandemia, é a inclusão digital de pessoas com deficiência, ainda mais com a automação para a qual a Justiça está caminhando a passos largos. Nessa perspectiva, o TRF1 iniciou um trabalho de inclusão digital para pessoas com deficiência. O que isso representa e de que forma essa inclusão pode prosperar com mais facilidade?
Juiz federal Ed Lyra: A qualificação pessoal e profissional de pessoas com deficiência lhes confere oportunidades de inserção social e profissional. E conhecimento de TI, em geral, lhes traz facilidades diárias, bem como elevam as possibilidades de ingresso, permanência e evolução no mercado de trabalho.
No entanto, algumas dificuldades subsistem. Exemplifico com as reduzidas/inexistentes condições de acessibilidade de alguns sistemas digitais utilizados no Judiciário, sobretudo na área fim, a exemplo do PJe com relação a pessoas cegas.
Primeira Região em Revista: Em sua visão, todo esse movimento institucional para respeitar e promover a acessibilidade e outros direitos da pessoa com deficiência apontam para uma sociedade mais justa? O que esperar do futuro quanto a esse tema?
Juiz Federal Ed Lyra: Sim, sem dúvida. Minha posição sobre o futuro é um otimismo moderado. Penso que as demandas das pessoas com deficiência – inclusive a acessibilidade – são um desafio constante que nunca chegará ao ideal, mas se deve sempre caminhar no sentido do aprimoramento.
Para exemplificar – quanto à acessibilidade física e arquitetônica, à medida em que se constrói ou reconstrói um ambiente –, pensemos no ambiente urbano, em que temos a oportunidade de promover melhorias de acessibilidade.
O mesmo vale para todas as demais formas de acessibilidade. Ainda há grandes obstáculos à integração social da pessoa com deficiência. Muitas demandas envolvem o setor privado e não foram minimamente enfrentadas. Menciono como exemplo a pessoa com deficiência na condição de consumidor: o comércio digital é uma realidade crescente que em muito poderia beneficiar a pessoa com deficiência à medida em que proporciona comodidade e evita o deslocamento físico. Todavia, grande parte dos sites é simplesmente inacessível para pessoas cegas, que utilizam tecnologia assistiva de leitura de tela.
Não obstante, reitero acreditar em avanços.