top of page

DO CICLO DO OURO AO MAR DE LAMA: A Justiça Federal e a maior tragédia ambiental do Brasil

Mario de Paula_edited.jpg
Por Mário de Paula Franco Júnior
Juiz federal da Seção Judiciária
de Minas Gerais
Ed. 94 Nov 2018

INTRODUÇÃO

 

Bento Rodrigues (Mariana/MG), quinta-feira, 5 de novembro de 2015, por volta das 13 horas a pacata população de 600 habitantes se preparava para mais uma tarde de céu azul e sol forte. Vilarejo de arquitetura colonial, antigo local de parada para descanso dos tropeiros que percorriam os caminhos das Minas Gerais em busca do ouro.

 

São Paulo/SP, quinta-feira, 5 de novembro de 2015, precisamente às 13 horas, 1 minuto e 50 segundos, o Centro de Sismologia da USP detecta um primeiro tremor de terra na região de Bento Rodrigues com uma magnitude de 2.3 na escala Regional Brasileira (mR) . Na sequência, cinco outros tremores, sendo dois de intensidade mais forte, foram registrados. Apesar destes, o histórico vilarejo e sua população seguiam normalmente a rotina diária.

 

Às 15 horas e 30 minutos, uma equipe de funcionários da mineradora Samarco é deslocada às pressas para tentar conter um vazamento na barragem.

 

Às 16 horas e 20 minutos, rompe-se a Barragem de Fundão, liberando uma enxurrada de 60 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos, mudando a paisagem, o ecossistema e a vida de milhares de pessoas. Teve início, naquele instante, a maior tragédia ambiental do Brasil.

MARIANA - DO CICLO DO OURO AO MINÉRIO DE FERRO
 

Mariana, nome dado em homenagem à rainha Maria Ana de Áustria, esposa de Dom João V, foi a primeira vila, a primeira cidade e a primeira capital do estado de Minas Gerais. Durante o século XVII, atingiu seu ápice, tornando-se a maior cidade produtora de ouro da colônia. A mina da passagem, por exemplo, localizada no quadrilátero ferrífero, bem próxima do centro da cidade, foi descoberta no ano de 1719 e estima-se que de lá foram extraídas 35 toneladas de ouro.


A vocação para a exploração minerária sempre esteve presente na vida da antiga capital. Durante o século XX, o ciclo da mineração voltou-se para a extração do minério de ferro. O desafio da engenharia, então, foi lidar com os rejeitos provenientes do seu processamento.


Para acomodar os resíduos, a solução encontrada foi a construção de barragens de contenção de rejeitos. Em Mariana, as Barragens de Fundão e Santarém, ambas controladas pela Samarco Mineração S.A., serviam a esse fim.


DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM


No fatídico dia 5 de novembro de 2015, apesar de o envio da equipe de emergência, rompeu-se a estrutura de contenção de rejeitos da Barragem de Fundão provocando, então, o vazamento da lama e dos rejeitos.

Bento Rodrigues, localizado a apenas três quilômetros de distância da Barragem, foi o primeiro distrito a ser completamente varrido pelo “mar de lama”.

A lama rapidamente atingiu o Rio Gualaxo do Norte que, seguindo seu curso normal, desaguou no Rio do Carmo. Este, por sua vez, carregou os rejeitos até o Rio Doce, um dos rios mais importantes dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, fonte de renda e subsistência para milhares de pessoas.

 

Impiedosa, a lama seguiu seu caminho de destruição. Finalmente, no décimo sexto dia, e após percorrer 650 km, o lamaçal atingiu o oceano atlântico, chegando à foz do Rio Doce.

 

O cenário de destruição causado pelo “mar de lama” deixou um saldo de 19 pessoas mortas e incontáveis danos socioambientais e socioeconômicos. Especialistas ouvidos na época disseram que qualquer recuperação da bacia hidrográfica levaria no mínimo quinhentos anos, e outros afirmaram que o Rio Doce e seu ecossistema jamais voltariam a ser o que eram.

 

DAS AÇÕES JUDICIAIS

 

Centenas de ações foram ajuizadas nas diversas instâncias judiciárias, cada qual trazendo à consideração do Poder Judiciário uma dimensão relevante dos danos ocasionados pelo rompimento da barragem.

 

O curso devastador do “mar de lama”, com toda a sua carga de rejeitos provenientes do processamento do minério de ferro, impactou diretamente os estados do Espírito Santo e de Minas Gerais, além de aproximadamente 39 municípios, sem falar dos inimagináveis impactos indiretos e reflexos que a tragédia produziu1.

 

Diante desse cenário de terra arrasada, natural foi o ajuizamento de muitas ações civis públicas nas diversas comarcas mineiras e capixabas, sem falar nos milhares de ações individuais propostas pelas vítimas.

 

O primeiro desafio que o sistema de justiça brasileiro teve que enfrentar foi a definição do juízo único, ou seja, o juízo universal responsável por processar e julgar as demandas envolvendo o “Caso Samarco”. A definição de um único juízo foi medida que se impôs ante a necessidade de se compreender holisticamente o fenômeno em todas as suas múltiplas dimensões. A quem, então, seria atribuída a missão de processar e julgar as ações relacionadas à tragédia de Mariana?

 

Essa importante missão foi atribuída à Justiça Federal. O Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Conflito de Competência nº 144.922 – MG2, assentou a competência da JUSTIÇA FEDERAL, em especial da 12ª Vara Federal da SJMG, para processar e julgar todas as demandas relacionadas ao caso.

 

A partir dessa decisão, as ações envolvendo o “Caso Samarco”, ressalvadas as ações individuais de indenização, foram encaminhadas à Justiça Federal em Minas Gerais.

 

Existem em tramitação na Justiça Federal em Minas Gerais, aproximadamente, 35 ações civis públicas envolvendo o “Caso Samarco”, cujos volumes e apensos ultrapassam duas centenas, constituindo tal acervo mais de 50 mil páginas entre petições, laudos, perícias e documentos. Foi preciso desenvolver uma logística própria na movimentação e guarda dos feitos em secretaria, bem como para seu deslocamento ao gabinete e vice-versa.

 

As ações ditas principais, 69758-61.2015.4.01.3400 e 23863-07.2016.4.01.3800, conhecidas no ambiente forense como ACP de 20 Bi e ACP de 155 Bi, respectivamente, estão na linha de frente, liderando todas as demais, já que, seguramente, englobam os pedidos formulados e os objetos versados em todas as demais.

 

Ao que se tem conhecimento, desconhece-se a existência de ação em tramitação no País em que tenha sido atribuído a uma causa o valor de R$ 155.052.000.000,00 (cento e cinquenta e cinco bilhões e cinquenta e dois milhões de reais) tal como ocorreu na ACP de 155 BI.

 

Apenas para ilustrar, o valor final da indenização acertada entre o governo dos Estados Unidos e a britânica British Petroleum (BP), no caso do vazamento de petróleo no Golfo do México em 2010, que durou 87 dias, foi de 20,8 bilhões de dólares (o equivalente a 70 bilhões de reais), menos da metade postulada pelo Ministério Público Federal no caso da tragédia de Mariana.

 

IMPORTÂNCIA DA DECISÃO

 

Ao receber a missão institucional de processar e julgar o “Caso Samarco”, a Justiça Federal não teve alternativa senão dedicar-se e empenhar-se na solução do litígio, valendo-se, para tanto, de todos os instrumentos disponíveis para a solução de controvérsias (sistema multiportas).

 

Partindo-se, então, de uma visão macroscópica do fenômeno, incluindo todos os seus desdobramentos, chegou-se à conclusão de que o meio consensual revelava-se o mais adequado para solucionar os inúmeros litígios que gravitavam em torno do desastre ambiental de Mariana.

 

A Justiça Federal cumpriu, uma vez mais, seu compromisso institucional demonstrando estar em sintonia com a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, prevista na Resolução nº 125 do CNJ3.

 

A gravidade do desastre foi de tal ordem que apesar do extenso número de instituições especializadas de que o País dispõe em sua estrutura normativo-administrativa (MMA, IBAMA, ICMBio, IEF, ANA, DNPM, dentre outros), passados mais de um ano da tragédia, não havia sido possível afirmar, com segurança, qual a real dimensão dos danos e suas múltiplas consequências4.

 

Após inúmeras reuniões institucionais e audiências conciliatórias, a Justiça Federal homologou o TERMO DE AJUSTAMENTO PRELIMINAR (TAP), pelo qual as partes estabeleceram condições e parâmetros objetivos para a contratação de um corpo de especialistas (experts) com vistas à elaboração do diagnóstico socioambiental e socioeconômico.

 

A homologação representou um avanço na solução do tema, pois criou as condições jurídico-institucionais para que fossem realizados completos diagnósticos socioambientais e socioeconômicos por intermédio de institutos especializados, independentes, de notória capacitação técnica, os quais darão, com isso, o suporte necessário para a efetiva reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem.

 

Essa identificação e quantificação dos danos, a partir de um corpo de especialistas independentes, contribuiu para que o clima de desconfiança entre as partes diminuísse, abrindo espaço para o diálogo e para a construção conjunta da solução de mérito.

 

Por dever de lealdade institucional, faço aqui justa e merecida homenagem a dois colegas da magistratura federal em Minas Gerais que também atuaram proficuamente no “Caso Samarco” e deram suas valiosas contribuições. Registro, em primeiro lugar, a corajosa e excepcional decisão liminar proferida em 18 de dezembro de 2015 pelo juiz federal Marcelo Aguiar Machado, verdadeiro marco jurídico-processual. Do mesmo modo, registro, com alegria, a atuação exemplar da minha antecessora e querida colega, juíza federal Rosilene Maria Clemente de Souza Ferreira, prolatando inúmeras decisões importantes e presidindo o feito com firmeza e apurada técnica processual nos seus momentos mais difíceis.

 

CONCLUSÃO

 

No âmbito jurídico, é quase consenso que o direito ambiental brasileiro e sua dogmática dividem-se entre o antes e o pós-tragédia de Mariana. Vários institutos, princípios e dogmas do direito ambiental estão sendo colocados diariamente à prova. Apesar de sua consistência doutrinária e jurisprudencial, o direito ambiental terá no “Caso Samarco” um terreno fértil para se desenvolver e se aprimorar ainda mais.

 

Há, também, aqueles que dizem ter a tragédia de Mariana inaugurado no Brasil um novo ramo do direito: o Direito dos Desastres. Este teria por objeto compreender, prever e mitigar os desastres, suas causas e consequências, dotando o ordenamento jurídico de instrumentos adequados à sua gestão.

 

Apesar do avanço obtido, não há como negar que ainda há muito trabalho a se fazer. Espera-se que a atuação da Justiça Federal possa fazer renovar a fé nas pessoas atingidas e a esperança de que a vida um dia volte a habitar o caminho percorrido pela lama. As dificuldades são muitas, os desafios e os sonhos também. Mais do que nunca, porém, não devemos nos esquecer de que: opera-se com a justiça do possível.

 

A Justiça Federal seguramente estará envolvida no “Caso Samarco” pelos próximos anos, quiçá pelas próximas décadas.

1 Lembro-me de uma curiosa ligação que recebi, certa vez, de um prefeito do Triângulo Mineiro, que nada tinha a ver com a região da tragédia, reclamando que não tinha condições de prover água tratada para sua população, eis que a Samarco, após o acidente, havia adquirido no mercado todo o estoque de floculante, um tipo de produto utilizado para tratamento de água.

 

 

2 “(...) A Justiça Federal é, pois, competente para conhecer e julgar demandas relacionadas aos impactos ambientais ocorridos e aos que ainda venham a ocorrer sobre o ecossistema do Rio Doce, sua foz e sobre a área costeira. (...) Observa-se que a 12ª Vara Federal da Secção Judiciária de Minas Gerais possui melhores condições de dirimir as controvérsias aqui postas, decorrentes do acidente ambiental de Mariana, pois além de ser a capital de um dos estados mais atingidos pela tragédia, já tem sob sua análise processos outros visando não só à reparação ambiental stricto sensu, mas também à distribuição de água à população dos municípios atingidos, entre outras providências, o que lhe propiciará, diante de uma visão macroscópica dos danos ocasionados pelo desastre ambiental do rompimento da Barragem de Fundão e do conjunto de imposições judiciais já direcionadas à empresa Samarco, tomar medidas dotadas de mais efetividade, que não corram o risco de serem neutralizadas por outras decisões judiciais provenientes de juízos distintos, além de contemplar o maior número de atingidos”. (CC 144.922/MG)

 

3 Art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. (Redação dada pela Emenda nº 1, de 31.01.13).

Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Novo Código de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão. (Redação dada pela Emenda nº 2, de 08.03.16) grifei

 

 

4 A esse respeito, vale citar a possível relação entre a tragédia de Mariana e o surto de febre amarela que atingiu o estado de Minas Gerais, objeto de pesquisa pela FIOCRUZ.

3.png
1.png

Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo

Márcio Fernandes/Estadão

Âncora 1
bottom of page