O Exame das condições da ação precluem? Velho tema que sempre retorna ao exame dos tribunais
Por Cristiano Miranda de Santana
Juiz federal atuando na Câmara Regional Previdenciária da Bahia
Ed. 85 Fev 2018
Não raro, a existência de melhores elementos nos faz ver que a presença das condições da ação, outrora afirmada em decisão precedente, não corresponde ao melhor entendimento. Então, em consequência, surge a dúvida: podemos reconsiderar decisão anterior que as considerou presentes?
O debate sempre se renova, e muitas vezes nos deparamos com decisões que afirmam a existência da preclusão,1 ora pela aplicação do art. 471, caput, do CPC/1973,2 ora pela aplicação do art. 473 do mesmo diploma processual3.
Porém, com a devida vênia, não parece ser esse o melhor entendimento.
Observemos que o citado art. 473 do CPC/19734 em momento algum impede o agir do Estado-juiz, que está autorizado a atuar de ofício em relação às matérias de ordem pública, a exemplo daquelas que versam sobre os requisitos de admissibilidade da tutela jurisdicional de mérito (pressupostos processuais e condições da ação).
O texto do artigo contém uma limitação subjetiva, pois se dirige exclusivamente à parte e, mesmo assim, tal impediente se circunscreve àquelas matérias sobre as quais se operou a preclusão5.
Em verdade, a limitação imposta ao Estado-juiz quanto à possibilidade de decidir temas já enfrentados por decisão pretérita está prevista no art. 505 do CPC/20156, com os devidos temperamentos, como bem demonstram as exceções contempladas em seus incisos7.
E o interesse processual – uma das condições da ação mantidas pelo atual CPC8 - encontra-se contemplado na exceção do inciso II supra, pois o próprio Código de Processo Civil (§ 3º do art. 485)9 10 expressamente admitiu o seu exame em qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, antes de se operar a coisa julgada.
Desse modo, não se pode impor ao Estado-juiz a limitação do art. 473 do CPC/197311, seja porque ele se dirige exclusivamente à parte, seja porque o exame das condições da ação deve ser feito pelo juiz em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não houver a coisa julgada. Aliás, é lógico que assim ocorra, pois é inadmissível que o mérito da causa seja resolvido sem que o direito de ação seja exercido de modo eficaz, razão pela qual o juiz deve aferir a presença das condições da ação desde o nascedouro até o término da relação processual e constatando a ausência de uma delas não deverá entregar a tutela de mérito12.
Com efeito, a preclusão tem como escopo conduzir o processo a uma solução final e opera-se em relação àquelas matérias disponíveis. Por isso, não obstante saneado o feito ou declarada a existência das condições da ação por decisão pretérita, é possível constatar-se, excepcionalmente, que essa declaração formal não corresponde ao panorama processual existente.
Assim, inexiste preclusão nessa hipótese, tanto mais que as condições da ação representam matéria conhecível de ofício pelo juiz e, portanto, inalcançável pela preclusão pro judicato13.
Não é por outra razão que eminentes processualistas, do passado e do presente, rechaçam a existência de preclusão na hipótese, sobretudo em relação ao Estado-juiz:
“...Acerca dos pressupostos processuais e das condições da ação, não há preclusão para o juiz enquanto não acabar seu ofício jurisdicional na causa pela prolação da decisão definitiva. A preclusão é sanção imposta à parte, porque consiste na perda de uma faculdade processual; mas não se aplica ao juiz, qualquer que seja o grau de jurisdição ordinária. Para o juiz só opera a preclusão maior, ou seja, a coisa julgada”. (BUZAID, Alfredo, RTJ 101/901)14.
“Em se tratando de condições da ação, mesmo que haja decisão a respeito, não há preclusão enquanto a causa estiver em curso, podendo o Judiciário apreciá-la mesmo de ofício”. (TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código de Processo Civil Anotado, 6ª ed., art. 267, p. 191).
“Como não há preclusão ‘pro iudicato’ para as questões de ordem pública, como o são as condições da ação, o juiz pode decidir de novo a respeito dessa matéria até proferir sentença, quando não mais poderá inovar no processo. O momento final (dies ad quem) para esse exame das condições da ação é: a) no primeiro grau de jurisdição: na própria sentença processual (CPC 267) ou material (CPC 269) porque, proferida a sentença, o juiz não mais poderá inovar no processo (CPC 463); b) no segundo grau de jurisdição, até o momento imediatamente anterior à proclamação do resultado pelo presidente da turma julgadora, podendo qualquer juiz (juiz, desembargador ou ministro), antes desse prazo final, pedir vista e alterar seu voto para examinar as condições da ação”. (JUNIOR, Nélson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 14ª ed., p. 627).
E, por sinal, esse tem sido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em votos proferidos por eminentes processualistas que integraram e integram a referida Corte, cuja missão precípua é uniformizar o direito infraconstitucional no ordenamento jurídico brasileiro15.
Além da farta jurisprudência do STJ, também se colhe da jurisprudência do STF, quando cabia à referida Corte a uniformização do direito infraconstitucional, idêntico entendimento16.
Não só. Devido a sua importância, o tema também foi debatido no VI Encontro Nacional dos Tribunais de Alçada17, quando se aprovou enunciado reportando-se exatamente sobre a situação ora examinada: “Em se tratando de condições da ação não ocorre preclusão, mesmo existindo explícita decisão a respeito”.
Antes de finalizar, ainda há outro ponto que merece a nossa reflexão e complementa o que foi exposto até aqui sobre a inexistência de preclusão pro iudicato em matéria de condição da ação. Ele se cinge à lógica de funcionamento do sistema processual no que toca à preclusão, pois, ao vingar a tese da sua existência em relação às condições da ação afirmadas quando de decisão antecedente, o mesmo raciocínio deverá ser aplicado aos pressupostos processuais, pois aquelas e estes são matérias de ordem pública, passíveis de exame ex officio, contempladas e disciplinadas de forma conjunta pelo § 3º do art. 485 do CPC18. Aliás, como diziam os romanos, ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).
Sendo assim, v.g., imaginemos que um segurado postule, perante a Justiça Federal, a concessão de benefício previdenciário em razão de sua incapacidade decorrente de um acidente de trabalho. Suscitada a incompetência em primeiro grau, o juiz não a acolhe, e tal decisão é ratificada pelo Tribunal ao julgar o agravo interposto. Indaga-se: ao julgar a apelação, a Corte seria obrigada a reconhecer a competência de órgão jurisdicional que não a possui?
Penso que a resposta deva ser negativa. O Tribunal deveria reconhecer a incompetência da Justiça Federal sob pena de, vingando a tese da preclusão, ter que manter a continuidade do processo perante juízo incompetente, mesmo diante da invalidade da relação processual neste caso pela ausência de pressuposto processual subjetivo.
Por sinal, a incompetência absoluta autoriza o manejo de ação rescisória (CPC, art. 966, II)19. Ao vingar o entendimento de que as decisões a respeito dessas matérias (de ordem pública) precluem, seria difícil sustentar a coerência de um sistema que admite a ação rescisória, mas não admitiria a correção do mesmo vício processual quando ainda em curso o processo de conhecimento. Convenhamos, não haveria razoabilidade em tal compreensão.
1 Conf. REsp. nº 232.744/RJ.
2 Atual 505 do CPC/2015.
3 Atual 507 do CPC/2015.
4 O referido texto normativo foi reproduzido pelo novo CPC, em seu art. 507: É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão.
5 E as matérias de ordem pública, como se verá à frente, podem ser reexaminadas, pois não precluem.
6 Reprodução do art. 471 do CPC/1973: Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II - nos demais casos prescritos em lei.
7 Reprodução do art. 505 do CPC/2015: Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II – nos demais casos prescritos em lei.
8 Art. 485, VI do CPC/2015.
9 Art. 267 do CPC/1973.
10 Art. 485 do CPC/2015: Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:
[...]
VI - verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual.
§ 3o O juiz conhecerá de ofício da matéria constante dos incisos IV, V, VI e IX, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
11 Atual 507 do CPC/2015.
12 “... Para atingir-se a prestação jurisdicional, ou seja, a solução do mérito, “necessário que a lide seja deduzida em juízo com observância de alguns requisitos básicos, sem cuja presença o órgão jurisdicional não estará em situação de enfrentar o litígio e dar às partes uma solução que componha definitivamente o conflito de interesses” (JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 55ª ed., p. 103).
13 Nesse sentido: REsp 1054847/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/11/2009, DJe 02/02/2010.
14 Apud AgRg/Resp nº 192.199-RS.
15 Conf. REsp 1054847/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/11/2009, DJe 02/02/2010; REsp 199400021054, SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, STJ - QUARTA TURMA, DJ DATA:29/09/1997 PG:48208; REsp 638.481/PR, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 227;
AGA 200000950548, NANCY ANDRIGHI, STJ - TERCEIRA TURMA, DJ DATA:25/06/2001 PG:00177.
16 Conf. RE 104469, Relator: Min. OCTAVIO GALLOTTI, Primeira Turma, julgado em 14/05/1985, DJ 31-05-1985 PP-08511 EMENT VOL-01380-03 PP-00570 RTJ VOL-00113-03 PP-01377).
17 Conclusão 9 do V Encontro Nacional dos Tribunais de Alçada, realizado em Belo Horizonte em junho de 1983.
18 Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:
I - indeferir a petição inicial;
II - o processo ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;
III - por não promover os atos e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;
IV - verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
V - reconhecer a existência de perempção, de litispendência ou de coisa julgada;
VI - verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;
VII - acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;
VIII - homologar a desistência da ação;
IX - em caso de morte da parte, a ação for considerada intransmissível por disposição legal; e
X - nos demais casos prescritos neste Código.
§ 1o Nas hipóteses descritas nos incisos II e III, a parte será intimada pessoalmente para suprir a falta no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 2o No caso do § 1o, quanto ao inciso II, as partes pagarão proporcionalmente as custas, e, quanto ao inciso III, o autor será condenado ao pagamento das despesas e dos honorários de advogado.
§ 3o O juiz conhecerá de ofício da matéria constante dos incisos IV, V, VI e IX, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
19 Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: [...] II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente.