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Uma vacina contra a desinformação
No mês em que se comemora o aniversário da BCG – a primeira vacina recebida por um recém-nascido - um alerta sobre o crescente movimento antivacina que está trazendo o retorno de doenças já extintas no País.
Renata Fontes Martins | Ed. 101 Jul 2019
Com informações do Ministério da Saúde e da Secretaria de Saúde do DF
“Pesquiso todos os dias. Com os alimentos certos não precisamos de vacinas e remédios”. Antônia (nome falso para preservar a identidade da entrevistada) conta que mesmo vacinada teve várias doenças: caxumba, sarampo, rubéola... Enfermidades contra as quais somos vacinados ainda na infância e que nos deixam protegidos. Ela desacreditou de vacinas e medicamentos alopáticos, optando por levar uma vida mais natural possível com alimentação saudável e medicina alternativa.
Descobri Antônia num grupo de mães no Facebook em que postei a seguinte pergunta sobre o tema, e rapidamente comentários contra e a favor iniciaram uma discussão: “O movimento antivacina é real na vida de vocês? Alguém conhece histórias de pessoas que não acreditam na imunização como forma de prevenir e controlar doenças, seja por questionarem a eficácia das vacinas ou por uma escolha de vida mais natural”?
“Tomei vacina minha vida toda e tive todas as doenças possíveis, como caxumba e catapora. Decidi, então, que meus filhos não iriam passar por isso, tomar a vacina e ter problemas com catapora, caxumba, sarampo. Não gosto de vacinas, de antibióticos, trato meus filhos com medicina alternativa”, diz Antônia (nome fictício).
Os filhos de Antônia, uma menina de nove anos e um menino de um ano e meio, tomaram as primeiras vacinas do calendário infantil porque ela foi persuadida pela mãe, mas atualmente, até a avó, influenciada pela filha, aderiu a não vacinar as crianças. Questionada sobre o fato de os pediatras costumarem pedir a carteira de vacinação, ela disse que somente leva os filhos ao homeopata e que este médico não solicita vacinas.
Para pais como Antônia, uma opção de vida; para a maioria dos profissionais de saúde, essas crianças são personagens de um problema crescente no Brasil: pais que deixam de vacinar seus filhos.
No mês de julho, quando se comemora a criação da Vacina Bacilo Calmette-Guérin, a BCG, (criada em 1º de julho de 1908 pelos cientistas Albert Calmette e Camille Guérin), cabe uma análise sobre a desinformação sobre eventuais malefícios das vacinas – crescente em todo o mundo via Redes Sociais.
A BCG, por exemplo, é considerada uma vacina de alta eficácia, que oferece cerca de 80% de proteção e que representou uma grande descoberta, utilizada na prevenção da tuberculose. Foi aplicada pela primeira vez em crianças em 1921, na França, e incluída no calendário oficial do Programa Ampliado de Imunizações (PAI) da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1974. No Brasil, foi introduzida em 1925, e a primeira imunização em crianças aconteceu em 1927. Isso porque as formas mais severas da infecção, que afetam principalmente os pulmões e em casos mais graves podem vir a acometer outros órgãos ou sistemas do corpo humano, são prevenidas com essa vacina nos primeiros dias de vida e na rotina de imunização para crianças com até quatro anos de idade.
Nos dias atuais, apesar de ainda apresentar a maior cobertura vacinal do País, principalmente por ser ministrada gratuitamente nas maternidades do Sistema Único de Saúde (SUS) logo após o parto ou nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), a BCG vem apresentando queda nos números de vacinação, segundo o informativo de imunizações da Subsecretaria de Vigilância à Saúde (SVS) do Governo do Distrito Federal. Em 2017 e 2018 a BCG foi a única a alcançar a cobertura pretendida, com 96,41% e 96,09%, respectivamente, em todo o Brasil. Mas essa realidade não corresponde às metas a serem alcançadas no DF.
De acordo com texto, o desempenho com a cobertura vacinal acumulada da BCG no DF em 2018 foi de 81,2 %, o que mostra um resultado abaixo dos 90% recomendados pela OMS para manutenção da eliminação ou controle de doenças imunopreveníveis. http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/05/Boletim-Imuniza%C3%A7%C3%B5es-Final-2018.pdf
A cobertura vacinal mede o quanto do público-alvo foi vacinado. Das sete regiões de saúde do Distrito Federal, duas, a região leste, representada pelas Regiões Administrativas do Itapoã, Paranoá, São Sebastião e Jardim Botânico, e a região oeste, representada pelas Regiões Administrativas de Brazlândia e Ceilândia não alcançaram a meta esperada de imunização.
O desabastecimento da vacina BCG, no primeiro bimestre de 2018, pode ter influenciado a queda no número de imunizações nesse período, mas, mesmo após ter sido normalizada, no segundo bimestre, a vacinação continuou abaixo da meta estabelecida. O texto também pondera que outros fatores, como fechamento de salas de vacina, falta ou insuficiência de servidores, distribuição de senhas, planejamento insuficiente de estoque de vacinas e recusas em vacinar, tanto por parte dos servidores quanto da população, podem ter gerado um impacto negativo na cobertura vacinal do DF.
Movimento antivacina
O movimento antivacina tem a sua base formada pela divulgação de um conjunto de acontecimentos que, ao longo dos anos, fez despertar a desconfiança de pessoas no mundo inteiro. O documentário DPT: Vaccine Roulette, lançado em 1982, é um marco para o início desse questionamento que provocou na população as primeiras dúvidas acerca da eficácia da vacinação. O registro associava a aplicação da vacina tríplice bacteriana (DPT), que protege contra difteria, tétano e coqueluche, ao possível surgimento de danos cerebrais.
Em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield publicou estudo na revista científica The Lancet em que 8 das 12 crianças estudadas apresentaram sintomas de autismo duas semanas após tomarem a vacina tríplice viral, que protege contra caxumba, sarampo e rubéola. Segundo o médico, o sistema imunológico delas apresentou problemas após os estímulos excessivos da vacina. O resultado do estudo, publicado em jornais do mundo inteiro, apontou inflamação do intestino que levaria toxinas ao cérebro.
Wakefield foi desmascarado e a pesquisa considerada fraudulenta, pois as famílias de algumas das crianças que participaram da enquete foram indicadas por um escritório de advocacia que iria entrar com ações contra a indústria farmacêutica. A revista tirou o estudo do seu site e o Conselho Britânico de Medicina cassou a licença do médico, mas o alarde deixou raízes e preocupações suficientes para influir na queda das taxas de imunização ao redor do mundo. Até hoje a pesquisa é reconhecida como um dos pilares do movimento.
Combate à desinformação
A recusa em vacinar é tida como o que há de mais preocupante em termos de políticas públicas voltadas para prevenção e controle de doenças, segundo a OMS. Essa resistência pode ser influenciada por vários fatores: falsa sensação de segurança atribuída ao fato de não haver mais surtos ou epidemias das doenças; negligência dos pais, que se sentem seguros e optam pela não vacinação; medo quanto à eficácia das vacinas como meio de prevenção e controle de doenças e desinformação veiculada em redes sociais.
O Brasil, que segundo o Ministério da Saúde, tem o maior programa público de imunização do mundo, apresentou em 2017 o menor índice de cobertura vacinal geral em crianças menores de um ano dos últimos 16 anos, e esse indicador também se manteve abaixo do recomendado entre os adultos.
Um surto recente de sarampo, iniciado em 2018, com mais de 10 mil casos registrados principalmente na região norte, fez o País perder o certificado de erradicação da doença em 2019. O critério estabelecido para a retirada do documento é a incidência de casos confirmados do mesmo vírus durante 12 meses. O Brasil possuía o certificado concedido pela Organização Pan Americana da Saúde (Opas) da OMS desde 2016.
O Ministério da Saúde notificou a Opas e informou que já trabalha para recuperar novamente o status de país livre do sarampo. Juntamente com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, uma Campanha Nacional de Vacinação contra o Sarampo, que contará com duas etapas, acontecerá nos meses de outubro e novembro deste ano.
Devido ao retorno do sarampo, em 2018 o Ministério da Saúde lançou a campanha “Saúde sem Fake News”, disponibilizando em sua página, um número de WhatsApp para o envio de mensagens da população, com imagens ou textos recebidos nas redes sociais a fim de confirmar a veracidade das informações. A campanha continua, e a página conta, também, com textos, vídeos e atividades de esclarecimento.
“Saúde sem fake news”- (61) 99289-4640
Assistente social do TRF1 explica que é direito da criança receber vacinas
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma, em seu art. 4º, que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,...” e em seu art. 5º, que “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Estabelecido pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), o calendário de vacinação infantil brasileiro é obrigatório. Instituído pela Lei 6.259/75, o programa prevê que as vacinas já comecem a ser aplicadas após o nascimento, ainda na maternidade. De acordo com o Estatuto, crianças e adolescentes têm o direito à vida e à saúde, embora as coberturas vacinais de todo País não alcancem as metas desde 2015, segundo informações da OMS.
Na entrevista abaixo, a assistente social do TRF1 Bárbara Firme de Faria, do Setor de Serviço Social (Setsoc) da Divisão de Assistência à Saúde (Diasa), fala sobre o direito da criança de receber vacinas.
Os pais ou responsáveis podem ser acusados por não vacinarem seus filhos? Qual a orientação do ECA nesse sentido?
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8089, de 13 de julho de 1990, dispõe, em seu artigo 14, § 1º, que é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. Entende-se que é direito da criança receber a vacina, e não direito dos pais escolherem pela vacinação. Sendo assim, os pais não poderiam dispor desse direito em nome da criança. O princípio norteador do ECA é a proteção integral da criança e do adolescente. Portanto, vaciná-los é uma forma de protegê-los.
Existe penalidade prevista para casos de não vacinação?
As penalidades possíveis para esses casos são em decorrência de denúncia de maus-tratos ou de negligência. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente ocorre por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, entre eles incluem-se os serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão, conforme disciplina o artigo 86º inciso III do ECA. Nesse caso, recomenda-se procurar o Conselho Tutelar da localidade da criança, conforme dispõe o artigo 13º do mesmo dispositivo legal, para que o caso específico seja ponderado. Entre as atribuições do Conselho Tutelar, inseridas no artigo 136º do ECA, está a de expedir notificações e também a de requisitar serviços públicos na área da saúde, ou seja, a instituição tem competência para atender, aconselhar os responsáveis e também aplicar medidas coercitivas nos casos pertinentes. Entre as medidas aplicáveis aos pais, conforme o artigo 129º, encontram-se advertência, encaminhamento a serviços e programas oficiais de proteção à família, a cursos e a programas de orientação. Considera-se que para muitos casos é mais importante que existam meios de orientação e de acompanhamento familiar sobre a importância da vacinação que preconizar medidas punitivas e meramente sancionadoras que podem não contribuir para bem-estar e saúde das crianças.
Se uma criança vier a falecer de uma doença que poderia ser evitada por uma vacina, os pais ou responsáveis podem ser penalizados?
Nesse caso, entende-se que a questão precisa ser analisada diante do devido processo legal para que seja comprovada a relação do óbito com a ausência da vacina no período adequado. De toda forma, os pais são responsáveis pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia, conforme disciplina o artigo 932, inciso I, do Código Civil.
Escolas e creches, tanto da rede pública quanto da rede particular, podem solicitar a caderneta de vacinação atualizada da criança?
Para ingressar em certos programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família, é necessário preencher determinados requisitos e obedecer a diversas condições. Dentre esses requisitos consta a apresentação do calendário vacinal das crianças até 6 anos e outros como a frequência escolar. Especificamente sobre a política de educação entende-se, com base no artigo 56° do ECA, que os dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental devem comunicar ao Conselho Tutelar casos de maus-tratos. Portanto, se a unidade escolar considerar que a não vacinação daquele aluno enquadra-se como maus-tratos, é possível a notificação ao Conselho Tutelar para proteger o direito da criança.
O Estado deve ser responsabilizado pela não imunização de crianças?
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde e determina atuações de vigilância sanitária como o conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir e prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, controlando a prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde. Portanto, incluídas no campo de atividades do SUS a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção. Sendo assim, é de responsabilidade estatal a disponibilização de vacinas de forma gratuita para toda a população. Para que o Estado seja responsabilizado é necessário que se comprove a sua culpabilidade, que deve ser objetiva, conforme a teoria do risco administrativo. Nesse caso, é preciso que seja comprovada a relação entre a conduta estatal, não oferecimento de vacinas por ação ou omissão, o dano que isso causou e o nexo de causalidade entre o dano gerado e a conduta estatal.