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Índios, quilombolas e territórios

A demarcação de terras indígenas e a titulação de territórios quilombolas é uma garantia constitucional, mas, apesar disso, o Judiciário é constantemente acionado em conflitos que envolvem esse direito

Ana Paula Souza e Patrícia Gripp

Agosto 2021

 |   Ed.

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Índios, quilombolas e territórios

Comunidades ou povos tradicionais são grupos que se destacam por suas diferenças culturais e formas próprias de organização social, do uso de territórios, recursos naturais entre outros aspectos. No Brasil, um exemplo dessas populações são os indígenas e os quilombolas, remanescentes de populações que ocupavam os quilombos, os quais serviram de refúgio para negros escravizados.


Por serem tradicionais, esses grupos possuem direitos previstos na Constituição Federal de 1988 e um deles é a titularidade de terras.


O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF destina às comunidades de quilombolas o direito à propriedade de suas terras:

Art. 68. “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado demitir-lhes os títulos respectivos”.


Já o artigo 231 da Carta Magna estabelece que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.


Esses dispositivos demonstram um esforço do constituinte em proteger os direitos e interesses dos povos tradicionais. Porém, mesmo após 33 anos da previsão desses direitos, o que se tem são milhares de ações no Judiciário para que índios e quilombolas consigam exercer o que lhes é garantido constitucionalmente.


Direito à terra: legislação e debates

De acordo com o Decreto 1.775/1996, a demarcação de terras indígenas deve ocorrer a partir de atuação do órgão federal de assistência ao índio, ou seja, a Fundação Nacional do Índio (Funai). De forma geral, o órgão deve designar grupo técnico especializado – composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional e coordenado por antropólogo –, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-

histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), somente 13,8% das terras do País são reservadas aos povos indígenas.


Já no caso dos quilombolas, os critérios para titulação das terras estão previstos no Decreto 4.887/2003 e na Instrução Normativa Incra 57/2009. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o órgão responsável por titular essas terras. Conforme publicação da Agência Brasil, até 2018, menos de 7% das terras reconhecidas como pertencentes a povos remanescentes de quilombos estavam regularizadas no Brasil.


Para debater o direito à terra por parte de comunidades tradicionais no Brasil, o Centro Judiciário de Conciliação da Seção Judiciária do Distrito Federal (Cejuc/SJDF) em parceria com o Sistema de Conciliação da Justiça Federal da 1ª Região (Sistcon) realizou, nos dias 26 e 27 de agosto, o workshop virtual “Povos Tradicionais e sua Relação com a Terra”.


Na ocasião, especialistas discutiram caminhos para fazer valer o direito à terra e meios de pacificação dos processos judiciais sobre o assunto, entre outros. “O objetivo é fornecer subsídios sócio culturais e antropológicos sobre comunidades tradicionais para embasar as atividades desenvolvidas por desembargadores e magistrados, além da comunidade jurídica e conciliadores, na resolução de conflitos envolvendo seus representantes”, destacou o desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e vice-coordenador do SistCon, César Jatahy.


Segundo o desembargador federal do TRF1 Néviton Guedes, mediador do evento, o encontro foi “uma tentativa de fazer com que a Justiça Federal administre esses conflitos pela terra de uma maneira mais moderna, mais humana e conciliadora e com confraternidade, como se move em grande parte o Direito”.


A coordenadora do Cejuc/SJDF, juíza federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho, ressaltou a função social do workshop como um referencial na cultura de aproximação entre o Tribunal e o tema da terra e da questão fundiária, que, desde 1850, apresenta um histórico de problemas. “Desde então, o Brasil vem debatendo a constituição de uma cultura jurídica acerca do tema. A cada passo que se dá na evolução dessas discussões no mundo acadêmico, a gente percebe que ainda há muito que se construir e se preservar dessa relação e daqueles que nos precederam e sabem lidar com a terra de uma forma muito especial”, considerou a magistrada.


Ex-coordenadora do SistCon, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso defendeu que “os imbróglios judiciais nessa área têm que ser resolvidos por meio da conciliação para diminuir o sofrimento dessas comunidades, com a parceria dos órgãos públicos envolvidos”.


O workshop foi promovido em parceria com a comunidade quilombola Kalunga, a Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (Esmaf) e as Universidades Federais do Piauí (UFPI) e da Bahia (UFBA).


Legislação

Durante o evento, o professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, doutor em Direito dos Povos Indígenas, explicou que os conflitos envolvendo as terras tradicionais indígenas e quilombolas aumentam cada vez mais e é fundamental que o Poder Judiciário se preocupe com a questão.


Ele destacou a formação dos quilombos no Brasil e sua importância, ressaltando que “são formações sociais e grupos de afrodescendentes, que saem do sistema do escravismo colonial e se internam no interior para deixar de ser escravos, para se livrar do escravismo”.


O docente ainda listou as normas legais que garantem os direitos dos descendentes de escravos: “Os artigos 231 e 232 da Constituição Federal brasileira reconhecem o respeito às formas de organização própria dos povos indígenas, além de suas crenças, costumes, usos e tradições, bem como os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras”.


Além da previsão constitucional, o professor doutor informou que a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também reconheceu esse direito aos remanescentes de quilombos.


Regularização

A procuradora federal Gilda Diniz dos Santos falou, na ocasião, sobre o tema “Política Pública de Regularização de Quilombo – Complexidade e Desafio”. Ela explicou que o Decreto 4.887/2003 regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o artigo 68 do ADCT. “O processo de reconhecimento e regularização de terras quilombolas tem muitas etapas e é bem complexo”, disse a procuradora.


Segundo ela, a Fundação Cultural Palmares é a responsável pelo processo de reconhecimento e o Incra inicia o procedimento de certificação a pedido da comunidade, de outros órgãos ou por meio de ofício. Nesse processo, é criado um grupo de trabalho multidisciplinar para pesquisa de campo, com antropólogos e engenheiros agrônomos e ambientais para elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Também há o levantamento fundiário de todos os proprietários e posseiros e a realização de estudos socio-históricos para comprovar a relação da comunidade requerente com a área reivindicada.


No entanto, várias dificuldades são encontradas nesse processo, como a quantidade de áreas particulares, o tamanho do território, os conflitos possessórios e a relação de confiança da comunidade com a equipe multidisciplinar.


A doutoranda apresentou, ainda, informações da quantidade de RTIDs publicadas por ano, de 2005 até 2021, e concluiu que houve uma diminuição flagrante durante o período, inclusive na quantidade de decretos de interesse social publicados pelo Poder Executivo.


Conflitos socioambientais

A palestra do professor doutor e PhD Júlio César de Sá da Rocha foi sobre o tema “Quilombolas – Conflitos Socioambientais”. Ele levantou a questão socioambiental da base de lançamento de Alcântara, no Maranhão, onde existem famílias quilombolas que receberam determinação de retirada do local. “Esse conflito é muito forte. Ou seja, o próprio Estado conflitando com as comunidades, gerando insegurança alimentar, piora da qualidade de vida e impactos no modo de vida das comunidades”, lamentou.


Além disso, o docente ressaltou que existem milhares de processos envolvendo essas questões no Judiciário e opinou no sentido de que as instituições jurisdicionais deem prioridade a esses conflitos para tentar solucionar os casos de maneira conciliatória. Ele sugeriu a realização de audiência pública para escutar as comunidades, com uma mesa de negociação dos maiores conflitos que envolvem territórios quilombolas no País.


“Onde se enfrenta esse tema, as pessoas estão morrendo. Ser quilombola neste País, em 2021, é viver em perigo de vida, viver permanentemente sob tensão. Ou acorda vivo ou acorda morto”, alertou Júlio César.


Projeto “Ser Quilombola”

O defensor público André Carneiro Leão, coordenador do Grupo de Trabalho de Comunidades Tradicionais da Defensoria Pública da União, discorreu sobre o “Processo de Certificação e a Titulação das Comunidades”.


Ele apresentou o projeto “Ser Quilombola”, criado para escutar comunidades vulneráveis e fazer o levantamento de dados para embasamento de ações judiciais. “Percebemos, a partir das demandas que chegaram, que havia, de fato, uma ausência de acesso à Justiça por parte de comunidades quilombolas. Acho que a gente precisa mudar a forma como enxergamos e interpretamos os direitos dessas comunidades”, relatou o defensor público.


Para André, é preciso aprender uma nova perspectiva de direito com essas comunidades: “Nós buscamos conversar e visitar as comunidades, porque não é possível compreender essa relação sem estar no território quilombola”.


Segundo o defensor, mais de 3,4 mil comunidades quilombolas já foram reconhecidas pela Fundação Palmares, mas poucas detêm a titularidade de suas terras. “No entanto, existem mais de 5 mil comunidades quilombolas. Ou seja, mais de 2 mil ainda não foram certificadas nesse processo”, lamentou André.


Quilombos - Sematologia face a nova etnicidade

O professor doutor Alfredo de Almeida, explicou que o Código Negro (Code Noir) foi instituído pelo Rei da França Luís XIV, em 1685, e trazia um conjunto de disposições legais que deviam ser cumpridas pelos negros. Ele informou que, diferentemente de outras metrópoles europeias, a Corte portuguesa não tinha esse Código.


Devido a isso, segundo o docente, no Brasil havia uma consulta do Conselho Ultramarino para o rei se manifestar diante de situações práticas: “O rei se manifestava emergencialmente, pois não havia um código negro”.


O especialista ainda observou que, da abolição da escravidão até a promulgação da Constituição Federal de 1988, não houve mais nenhuma menção aos quilombos na legislação do País. “O quilombo ficou 112 anos desaparecido e aparece depois como remanescente'', lamentou.


Desapropriação para Remanescentes de Quilombos

Na sequência, o desembargador federal aposentado Manoel Lauro Volkmer de Castilho lembrou que não atuou em nenhum caso que tivesse discutido alguma questão relacionada aos quilombos e à condição jurídica de seus direitos, até a promulgação do Decreto 4.887/2003.


“Isso revela que eles foram incluídos no ADCT e não no corpo do texto da Constituição como as demais minorias. A explicação é a de que os parlamentares mais conservadores não quiseram que incorporasse ao texto principal, porque poderia ‘contaminar’, do ponto de vista hermenêutico, outras categorias constitucionais. Então, foi mais prudente empurrá-los para o ADCT”, revelou o magistrado.


No entanto, o desembargador destacou que o texto do ADCT não tem menor nível hierárquico do que o texto permanente da CF. “Isso não diminui seu valor constitucional. Aliás, ele está relacionado com os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, no corpo permanente”, disse.


Para Manoel Lauro Volkmer de Castilho, quando o artigo 68 diz que aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir seus títulos, “estabelece um código de direitos administrativos e judiciais que deve ser levado em conta ao tratar essas questões. Esse dispositivo contém todos os mecanismos que se precisa juridicamente para enfrentar a questão da propriedade dos quilombolas e dispõe sobre como se define a identidade, a ocupação e como se pode exigir do Estado a legitimação e regularização desses remanescentes”, enfatizou.


O magistrado ainda comentou sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta por um partido político conservador, que questionava o Decreto 4.887/2003. “A ação levou mais de dez anos, mas definiu que o decreto era constitucional, porque não estava incorrendo em inconstitucionalidade. Também admitiu o critério da autodefinição da ocupação, valorizando os termos da Convenção 169 da OIT, que consagrou esse tipo de critério. O direito deles é absoluto”, analisou o desembargador aposentado.


MPF

O procurador da República Daniel Avelino Azeredo discorreu sobre o tema “Dando concretude à proteção constitucional da comunidade”, em que apresentou o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público Federal (MPF).


O procurador apontou que há, atualmente, a paralisação dos procedimentos administrativos e uma ordem do Poder Executivo de não avançar na proteção das comunidades tradicionais. Isso se reflete nas ações dos órgãos federais, como o Incra. “O que a gente percebe é uma total paralisação dos procedimentos administrativos que possam tutelar o direito dos quilombolas”, considerou.


Para dar uniformidade aos processos acompanhados pelo MPF, ele informou que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou a Resolução 2030/2021, que disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais.


Daniel Avelino destacou que o objetivo é manter um diálogo permanente com as comunidades, conhecer a sua realidade com visitas in loco, conflitos existentes de terra, cultura e tradições, com o objetivo de proteger os quilombolas. O artigo 5º diz que “o Ministério Público deve viabilizar a observância do direito à participação dos povos e comunidades tradicionais e a necessidade de consideração efetiva dos seus pontos de vista em medidas que os afetem”.


Também destacou que o TRF1 tem um acórdão que protege a posse das terras quilombolas. “Ele determina que o Incra cumpra sua missão constitucional e finalize procedimentos em curso há anos”, disse o procurador.


Caducidade

A professora doutora Maria Cristina Vidotte falou sobre o tema “Reflexões sobre a Caducidade de Decretos Quilombolas”, em que tratou de decisões judiciais que estão considerando a caducidade de decretos que declaram como de interesse social as terras quilombolas para fins de desapropriação.


Ela explicou que, de acordo com o Decreto 4.887/2003, o prazo de conclusão de todos os procedimentos para titulação das terras quilombolas deve ser, no máximo, dois anos, mas que essa interpretação não condiz com a realidade de tramitação dos processos em curso. Por isso, segundo ela, não há que se falar em caducidade após dois anos.


“A desapropriação precisa de recursos financeiros e cada realidade é uma realidade. Não há como se falar em decadência porque é um processo demorado, que envolve várias etapas, um processo democrático em que são ouvidas todas as instituições e os interessados e tem prazo para contestação. É um processo complexo”, explicou a docente.

Ela também relatou que a Advocacia-Geral da União (AGU) já se manifestou, em 2012, por meio de parecer que, nesses casos em que o prazo de dois anos não é cumprido, não existe a caducidade.


Encerrando o workshop, a coordenadora do Sistcon, desembargadora federal Gilda Sigmaringa Seixas, afirmou que o evento foi um marco histórico para o TRF1 e que sem acordos e conciliação não será possível resolver os conflitos. “Esses problemas dos quilombolas não são mais só do TRF1, mas de todos os órgãos envolvidos e agentes públicos. Formamos uma rede de sustentabilidade em prol dos kalungas e precisamos encaminhar esse material do workshop. Os problemas existem e precisam ser solucionados. É preciso pensar em uma nova Justiça: a Justiça que queremos a partir de agora”, enfatizou a desembargadora.


A íntegra de todas as palestras do evento está disponível para acesso no canal da Esmaf no YouTube.

Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região

Praça dos Tribunais Superiores SAU/SUL 5 - Asa Sul, DF, 70070-900

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