Desafios do Judiciário na conciliação
Primeira edição de 2022 do projeto Quinta do Conciliador debate os desafios da Justiça pós-moderna no âmbito da conciliação
Patrícia Gripp
Fevereiro 2022
| Ed.
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Em busca de uma atuação proativa e inovadora, que permita a prestação de serviços jurisdicionais cada vez com mais qualidade ao cidadão, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) realiza o projeto Quinta do Conciliador para treinamento e aperfeiçoamento de conciliadores e conciliadoras que atuam na Corte.
São encontros mensais promovidos pelo Sistema de Conciliação da Justiça Federal da 1ª Região (SistCon) e conduzidos por intermédio de convidados que trazem reflexões sobre pontos importantes no que diz respeito à conciliação. O evento é sempre transmitido ao vivo pelo canal do TRF1 no YouTube.
A primeira edição de 2022 e terceira do projeto foi realizada em 17 de fevereiro e trouxe a palestra “Justiça pós-moderna: é possível conciliar?”, realizada pela juíza federal Raquel Soares Chiarelli, da Seção Judiciária de Goiás (SJGO), que destacou os desafios da pós-modernidade na atuação do Judiciário brasileiro.
Na ocasião, a coordenadora do SistCon, desembargadora federal Gilda Sigmaringa Seixas, informou que mesmo com a pandemia foram celebrados quase 190 mil acordos por meio da conciliação na Justiça Federal da 1ª Região.
Pós-modernidade
Raquel Chiarelli iniciou sua apresentação afirmando que é preciso entender como a vida real interfere no Direito, muda e transforma o resultado dos processos e a efetividade do trabalho no dia a dia da Justiça.
“Atualmente, na pós-modernidade, as pessoas vivem em função da imagem que precisam passar nas redes sociais, onde precisam ser perfeitas, bem sucedidas na vida pessoal e no trabalho e sem qualquer tipo de problema. Mas a realidade muitas vezes não é essa, e isso gera uma frustração enorme. Além disso, todos têm acesso a uma quantidade enorme de informações de maneira rápida e superficial, com a precarização do conhecimento”, contextualizou a magistrada.
Segundo a magistrada, a vida atual condiciona o sucesso como uma condição para felicidade. “Essa mesma forma de vida gera exclusão, sofrimento, doença, pobreza, violência e, principalmente, desconcerto. Mesmo quem pertence e pode viver a pós-modernidade sofre porque não sabe para onde ir. Ao mesmo tempo que existem muitas coisas positivas, nós não nos permitimos ter direito ao descanso e queremos trabalhar continuamente, porque precisamos estar atualizados, aprimorados. Esse é o nosso desafio como indivíduo na pós-modernidade neste mundo contemporâneo”, explicou a palestrante.
A juíza também apresentou os conceitos de Sociedade da Ignorância, Sociedade de Consumo e Sociedade Líquida. Para ela, há hoje uma superabundância e superficialidade da informação: “Vemos o descrédito na ciência, a substituição de juízos de bem e mal, certo e errado por considerações sobre utilidade e eficiência. Isso cria um ambiente de incertezas do que é verdade ou mentira”.
Confiança
A porcentagem da confiança da sociedade no Estado foi outro tema abordado. Raquel Chiarelli alertou para a descrença da população nos órgãos públicos e, consequentemente, na Justiça. O último Índice de Confiança do Brasil na Justiça Brasileira (ICJBrasil), de 2021, mostrou que o Poder Judiciário tem 40% de confiança da população, e a magistrada defende que é preciso melhorar ainda mais esse percentual.
“A crise da Justiça é a crise do Estado. Em todos os países, a gente vê o populismo ganhando asas, porque o Estado Democrático de Direito está em crise e não consegue entregar aquilo que prometeu. O índice antes era de 24% de confiança e passou para 40%. Houve uma melhora muito boa, mas a confiança no Judiciário é inferior à das grandes empresas, da imprensa, do Ministério Público, da Polícia e da Igreja Católica. Ainda há muito a melhorar”, alertou a juíza.
Conciliação
Raquel ressaltou que a Justiça evoluiu e se transformou com o sistema de conciliação, mas essa conciliação somente será efetiva quando houver a compensação das desigualdades estruturais e desobjetificação do cidadão.
A juíza afirmou que é preciso usar a pacificação na conciliação, colaborando para a formação de um consenso equilibrado sobre os interesses em conflito. “Uma conciliação que trata o cidadão como mais um número, mais um item na estatística, que não respeita o tempo da conciliação, não é uma conciliação verdadeira e colabora para perpetuação das desigualdades. É preciso que haja esse cuidado e essa segurança por parte de quem trabalha com conciliação, de saber qual é o objetivo e quais são as dificuldades, qual que é o contexto pós-moderno”, aconselhou.
Ela acredita que por mais que os magistrados tenham aprendido que é possível negociar em desequilíbrio e que no campo empresarial, por exemplo, a empresa mais fraca pode conseguir vantagens em relação à empresa mais forte se souber usar as técnicas adequadas, no mundo do Direito e da violação dos direitos isso não é assim. “A hipossuficiência faz com que a pessoa perca a capacidade de negociar e de usar técnicas de negociação”, disse a magistrada.
Raquel enfatizou que o conciliador e o juiz são estimulados a facilitar uma solução e buscar um resultado rapidamente a fim de atender logo a outro processo de conciliação, pois quanto mais acordos são fechados, mais eficazes conciliador e juiz se mostram.
“Isso às vezes resulta na inatividade do sistema. A gente precisa saber o momento de compreender e de renunciar a um enfoque produtivista em nome dos princípios da conciliação, em nome do empoderamento e da pacificação. Assim, vamos conseguir caminhar um pouquinho mais e vencer os nossos desafios pós-modernos para conseguirmos concretizar a Justiça que pensamos 300 anos atrás. A sociedade ainda não consegue essa Justiça no dia a dia”, ponderou a magistrada.
Por fim, a juíza federal concluiu que é preciso ter uma consciência reflexiva sobre o papel do sistema de Justiça na efetivação dos direitos e da concretização da cidadania.
Ao ser aberto espaço para perguntas, um dos participantes do evento questionou se a palestrante vê a conciliação como instrumento gradativo de retomada da confiança da sociedade no Judiciário.
Raquel Chiarelli respondeu que sim, já que o objetivo da conciliação “é levar a Justiça para perto das pessoas e trazer as pessoas para perto da Justiça”.
Para a magistrada, o futuro é humanizar cada vez mais a Justiça. “A gente não pode fingir que não recebe essa quantidade impressionante de processos. É preciso adotar medidas de gestão que possam dar vazão a esses processos, porque é muita coisa e temos pouco capital humano”, finalizou.
Quinta do Conciliador
Criado em abril de 2020, o projeto teve a primeira edição em 2021 em razão da pandemia. O encontro inaugural abordou o tema “Conciliação: Ética do cuidado e suas potencialidades”, e a segunda edição tratou do tema “Conciliação: aspectos práticos da Resolução 125/2010 do CNJ”.
As palestras buscam o aprofundamento e a ampliação da reflexão sobre temas fundamentais para a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos em busca da excelência das práticas dos métodos consensuais.